sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Ação de graças...

Na última quinta-feira de novembro, na outra América comemora-se o dia de Ação de Graças, um feriado tradicional onde se procura evocar as raízes cristãs da nação mais poderosa do mundo, como nesta ilustração de Norman Rockwell: uma família feliz, unida, saudável, em torno de um peru que mais parece um filhote de tiranossauro.  
Curioso no quadro é que foram excluídos outros personagens originais da história, como os indígenas. E aí é que começam meus questionamentos.
A história – ou melhor, uma versão dela – diz, em resumo, que os peregrinos recém-chegados à América no navio Mayflower em 1620, fugidos da perseguição religiosa na Europa e desejosos de estabelecer uma nova vida, guiados por ideais cristãos, passaram terríveis dificuldades e por fim fizeram amizade com indígenas, que os ensinaram a cultivar o milho, plantar abóboras, capturar perus e assim sobreviver. Foi então celebrada a paz e todos viveram felizes para sempre.
Na verdade tudo começa um pouco antes. Cerca de 1610, um comerciante e aventureiro inglês, John Rolfe, chegou à região da Virgínia (então Tenakomakah) contrabandeando sementes de tabaco, com o que conseguiu prosperar. Conheceu e se apaixonou pela nativa Amonute, apelidada Pocahontas. A história é triste, pois Pocahontas morreu em viagem à Inglaterra, onde seria usada como peça de marketing e curiosidade popular, para convencer os europeus de que os nativos poderiam ser domesticados e assim salvar o empreendimento atraindo mais gente para as colônias. 
O fato é que a história da América (do Norte) começou com contrabando e exploração do vício alheio (e assim permanece). Dez anos depois, entram os peregrinos em cena, e o caso do peru ao creme de abóbora e milho foi na verdade a comemoração do extermínio de nativos, algo em que os americanos se tornaram experts. A tribo que ensinou aos peregrinos os segredos da sobrevivência, o fez em troca do massacre de uma tribo rival, já que os imigrantes possuíam armas mais eficazes.
Ao longo do tempo, esses episódios sangrentos foram sendo apagados da história, por razões óbvias, ao ponto de, na obra que ilustra este artigo, não haver, como citei, nenhum índio... Aliás, a decantada "terra das oportunidades" é até hoje um cenário de bang-bang, um salve-se quem puder. E geralmente salva-se quem tem a arma de maior calibre.
A república se fez sob as luzes do humanismo, e não de “valores cristãos” como se quer fazer crer. Os homens que redigiram a carta magna não eram assim tão evangélicos: eram no máximo “deístas”. Tinham uma noção de que havia um Criador, que depois deixara tudo “ao Deus dará”, ao acaso. Essa era a corrente dominante na época, que ecoa até aos sermões de Harry Emerson Fosdick e Ralph Waldo Emerson. Se o cristianismo lá fosse para valer, a escravidão não teria durado mais um século; os índios não seriam desalojados à força de seus territórios e confinados a reservas distantes, em cuja mudança a maioria morria e era largada à beira do caminho.
As universidades de Yale, Harvard e Cambridge teriam permanecido fiéis aos princípios originais cristãos, e não teriam se transformado no caldo de cultura para organizações como a Maçonaria, Caveira e Ossos e até a KKK.
Não teriam devastado suas reservas naturais – como fazem até hoje enquanto cobram soluções do resto do mundo. Não teriam exterminado espécies inteiras como os búfalos, que de mais de 100 milhões se reduziriam a poucos milhares em questão de décadas. Se o cristianismo fosse para valer, não haveria lá ônibus em que negros não podiam entrar, e naqueles em que podiam entrar, não podiam sentar. Não haveria bairros segregados, onde negros não podem andar. E a bem da verdade, os brancos também não se topam: irlandeses, italianos, alemães e judeus não se bicam e não ousam andar do lado errado da rua. Senão, são abatidos à maneira americana: com um belo taco de baseball. Nação cristã, dizem. Recomendo três filmes para entender os USA: “Sicko” e “Capitalismo, Uma História de Amor” (ambos de Michael Moore) e “Por Que Lutamos (“Why We Fight”, de Eugene Jarecki, 2005).
Se o cristianismo fosse para valer, os americanos não teriam se tornado arrogantes e indesejados pelo resto do planeta, ao manterem sua filosofia predatória e destruidora que causa uma guerra atrás da outra. Não teriam criado, a exemplo de Hitler, campos de concentração durante a II Guerra, para “inimigos em potencial” (no caso, para quem não sabe, japoneses e seus descendentes então em solo americano foram confinados a campos nos desertos).
Basta ver que se apossaram de metade do México, roubaram a Louisiana da França, tomaram as Filipinas da Espanha, fizeram de Cuba um bordel a céu aberto. Promoveram golpes de estado por toda parte ao sul do Rio Bravo; meteram o bedelho no Vietnam e na Coréia, impõem um bloqueio desumano e cruel a uma nação pequena e que não tem nem força aérea, sob a justificativa esfarrapada da "ameaça vermelha". Deram com os burros n’água, ou melhor, na areia, ao financiar os talibãs contra os russos e Saddam Hussein contra o Irã, e agora lidam mal e porcamente com as conseqüências. 
E depois não entendem – ou fingem que não entendem – por que o mundo os odeia. Talvez por isso Hugo Chávez, o notório boquirroto bolivariano, que não perdia uma oportunidade, tenha dado a Barack Obama um exemplar do livro “As Veias Abertas da América Latina”, do jornalista uruguaio Eduardo Galeano, onde se narram as atrocidades, a maioria de pedigree yankee, perpetradas contra nossa gente. Que também é americana, embora separada da “terra dos bravos” por um muro que se iguala em ignomínia àquele outro, de Berlim, de finalidade ideológica. O de Washington é racista mesmo, doa a quem doer. Em tempo: Obama, com toda sua a pinta de intelectual, nunca havia havido falar nem do livro nem do autor, assim como a maioria de seus súditos, inclusive pessoal de embaixadas por aqui, que me disseram isto com todas as letras.
Se os fundadores da nação levassem o cristianismo a sério, a inscrição “In God We Trust” nas notas de dólar não estaria acompanhada de símbolos ocultistas, como pirâmides e o “olho que tudo vê”, e nem a planta da capital seria um mapa esotérico com os pontos chave inseridos num pentagrama colossal. Podia ficar aqui uma semana listando essas coisas, mas o espaço é curto. 
Por tudo isso, esse tal feriado de Ação de Graças, para mim, é muito discutível. Damos graças a Deus, sim, pelos bons frutos que os Estados Unidos produziram. Moody, Spurgeon, Finney, o casal Bagby, James e Zachary Taylor, Billy Graham e David Wilkerson, Boothe, Jane Crosby, Entzminger, Munsford, Rosalee Appleby e tantos outros pastores, missionários e evangelistas que abençoaram o Brasil com suas pregações, seus livros, seus hinos inspirados. 
Mas como nem tudo que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, também de lá saíram Jim Jones, Peter Wagner, Benny Hinn, a turma do Fuller e toda uma nova safra de pseudo-apóstolos e falsos-profetas que têm assolado e desfigurado a face da Igreja neste século (leia a seção “Mundo Cão”, ao lado, para ter uma noção do que estou falando). De lá têm vindo não ventos, mas verdadeiros tornados e tsunamis de heresias, profetadas em boletins e doutrinas estranhas ao ensino de Jesus e dos apóstolos (os de verdade).
Assim, façamos sim uma ação de graças. Não em um feriado importado, como um Halloween ou coisa que o valha, pois o Dia de Ação de Graças hoje é uma data comercial tanto quanto o Natal, desde 1939, quando Roosevelt instituiu a celebração oficialmente para o comércio, aumentando o tempo disponível para propagandas e compras antes do fim do ano (pois era considerado inapropriado fazer publicidade antes do Dia de Ação de Graças). Rejeitemos costumes que começaram aparentemente bem, mas se tornaram apenas comércio e imperialismo cultural. Respeitamos e honramos a dívida que temos para com os servos de Deus que de lá vieram, mas rejeitamos os enganos que também vêm daquele país.
Que o verdadeiro cristão faça de todo dia e cada dia um dia de ação de graças, pois, como diz a Escritura, “Este é o dia que o Senhor fez; regozijemo-nos, e alegremo-nos nele” (Salmo 118:24). E que venha a data em que vejamos, dividindo o gordo peru, não apenas red-necks rubicundos, mas também negros, indígenas, hispânicos e todos os outros que, ao lado dos euro-descendentes ajudaram a construir a terra das oportunidades, só para dela serem excluídos mais tarde.

Em tempo - Será que o Obama já leu o livro que o Chaves deu para ele? (Link aqui)

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atualizado em 25/11/2014