segunda-feira, 29 de abril de 2013

Novas revelações

Li outro dia um artigo sobre os cristãos primitivos, como viviam e o que pregavam, e não tive como evitar uma analogia com os cristãos de hoje - eu incluso - vinte séculos depois. Muitas coisas ainda são as mesmas, felizmente. É verdade que ainda cremos que Deus é o criador de todas as coisas, e que um dia o Homem caiu em pecado e se afastou Dele. Como os cristãos originais, cremos que a ponte que Deus providenciou para que o Homem voltasse a se conectar com o Criador é Jesus Cristo, que viveu entre nós, morreu na cruz mas ressuscitou ao terceiro dia, subindo aos céus em seguida e prometendo estar conosco sempre. E ainda compartilhamos com aqueles irmãos de 2.000 anos atrás muitas coisas.
Mas algumas outras coisas, não. Acho que as diferenças entre nós e eles se explicam com as tais “novas revelações”, “nova unção, o “novo de Deus e bobagens do tipo. Algumas nem são mais tão novas assim. Quando apareceram sim, eram novidades. E que com o tempo foram se cristalizando e hoje soam como se fossem verdades definitivas. Muitos acreditam tanto nessas falácias que acabam por defender com unhas e dentes o que acreditam ser “verdadeiro”. Dizem que a sua denominação ou facção da cristandade é a responsável por guardar e manter os ensinamentos originais, mas se pensassem e estudassem um pouco mais veriam que o que acreditam ser a realidade só parece ser legítimo porque está na área há algum tempo. Parece... mas não é.
Nem sempre foi assim. Tudo ia bem, até que, em certo momento, recebemos uma nova revelação”. Por exemplo, o que Jesus disse - que não haveria entre nós uns maiores do que os outros (Marcos 10:43) - deixou de ser verdade. A assembléia dos santos crescia tanto que precisávamos adotar uma hierarquia, e transformamos os dons e ministérios - pastores, bispos, diáconos, presbíteros - em cargos honorários. Agora, quem recebe esses títulos, passa a ter autoridade sobre os demais.
Não contentes com os dons nomeados na Bíblia, e não contentes em transformá-los em cargos, ainda criamos outros: arcebispos, cardeais, patriarcas, papas. Agora sim, contornamos o problema que Jesus e os apóstolos deixaram sem resolver. Talvez eles não pensassem que a Igreja cresceria tanto!
Criamos também uma novidade desconhecida dos Doze (os Doze Apóstolos, que fique bem claro; não confundir com G12, M12, e outras invenções modernas): o conceito da “cobertura espiritual”. Já que temos agora todos esses cargos, e os outros subalternos fazendo uma escadinha debaixo de cada um, nada mais natural do que justificar essa estrutura com a “cobertura”: ou seja, você tem que se encaixar na hierarquia, e se resolver sair dela, a maldição o alcançará.  
Também resolvemos, a certa altura, que apesar de Jesus ter dito que cumpriu toda a Lei (Mateus 5:17), e de isso ter ficado claro quando o véu do Templo se rasgou (Mateus 27:51; Marcos 15: 38; Lucas 23:45) e a carta aos Hebreus ter explicado tudo tintim por tintim (8:13), a Lei não podia ser abandonada assim,
sem mais nem menos. Afinal, era servira durante tanto tempo! Seria um desrespeito. Aí voltamos a adotar os costumes abolidos pelos apóstolos. Reabilitamos o sábado. Voltamos a cobrar o dízimo, mas como não vivemos de plantação e criação de animais, cobramos em dinheiro. Ou no cartão. Aproveitamos e incluímos no cardápio as primícias, ofertas alçadas, o “princípio da semeadura”...
Revitalizamos a figura do sacerdote, mesmo que o Novo Testamento esteja cheio de afirmações de que todos somos uma raça eleita, um sacerdócio real (I Pedro 2:5,9), e que não precisamos de intermediários (I Timóteo 2:5; Hebreus 8:6; 9:15; 12:24). Mas, como nem todos têm as mesmas habilidades na oratória, instituímos um sacerdote profissional, pago por nós, para nos dizer o que gostamos de ouvir. Caso contrário, nós o demitimos e contratamos outro.
Alguns cristãos foram ainda mais criativos, criaram um tipo de sacerdote tão exclusivo que nem família pode ter: esses são proibidos de casar e de ter bens que possam administrar. Tudo bem que Paulo disse que quem governa a Igreja deveria ser casado e administrar bem a sua casa (I Timóteo 3:4, 12), mas isso foi antes de descobrirmos um jeito melhor de conduzir as coisas.
Fizemos várias reuniões e resolvemos que, embora Jesus tenha dito que quem cresse e fosse batizado seria salvo (Marcos 16:16), agora é assim: batizamos primeiro. Quem for batizado é que será salvo, independentemente de crer ou não, e até mesmo se não tiver capacidade para crer, como bebês recém-nascidos. A gente os batiza, depois eles confirmam. Por isso criamos a “confirmação”.
Um passarinho nos contou que só crer não basta, é muito fácil. A pessoa tem que passar uma temporada num lugar que não sabemos bem ao certo, mas que chamamos pelo belo nome de “Purgatório”. Já que o Sangue de Jesus não é suficiente, ao contrário do que disse o apóstolo João (I João 1:7), que andou com Ele, determinamos que a purificação tem que ser pelo fogo. Enquanto o coitado fica lá assando em banho-maria, vamos aqui rezando por ele, a partir do sétimo dia de sua morte, depois um mês, um ano e por aí vai.
Também achamos por bem dar uma força ao finado, para que ele não se perdesse. Providenciamos umas velas para iluminar o caminho do falecido. Todo mundo tem que fazer isso, senão a alma fica penando por aí. Isto não tem na Bíblia, então nós, que somos muito criativos, dizemos que quem não faz isso está fora da comunhão.
E por falar em Maria, mesmo que não haja nada disso nas Escrituras, espalhamos que ela só poderia ter concebido o Salvador se também tivesse nascido sem pecado. E já que resolvemos isso, também tivemos que criar a história de que ela não poderia ficar enterrada, deveria também ser levada aos céus. Ah, e também a sua casa.
Tivemos uma nova visão: ressuscitar os levitas, mesmo que Paulo tenha dito que entre nós, cristãos, não devia haver nem judeu nem gentio (Romanos 10:12; I Coríntios 1:24; 12:13; Gálatas 3:28; Colossenses 3:11). E junto com os levitas, trouxemos de volta o shofar, um objeto tão abençoado que não sabemos como os cristãos primitivos o deixaram de lado. De quebra, por que não usar também o tallit,
o kippah, o menorah e a arca da aliança, mesmo que seja de papelão coberto com celofane dourado? Nessa a gente pode tocar à vontade, e assim não corremos o risco de morrer como Uzá (II Samuel 6:7). Aproveitamos o embalo e agora estamos dizendo que até mezuzah é para o cristão ter em casa.
Ganhamos uma nova unção, a de ungir a tudo e a todos, embora Tiago 5:15 seja claro quanto a quem deve ungir, quem deve ser ungido e como. Mas o “novo de Deus” inclui ungir carros, sapatos, carteira de dinheiro, e até algumas partes do corpo dos varões e das varoas...
Descobrimos que Deus tinha que voltar a habitar em templos feitos por mãos humanas, nos esquecendo de Atos 7:48 e 17:24. Aproveitamos um texto fora do contexto, onde Jesus disse “a minha casa será chamada casa de oração” (Marcos 11:17), para justificar essa idéia, que no fundo é uma ótima desculpa para arrecadarmos dinheiro “para a manutenção da casa de Deus”. Também serve para dizermos que “a casa do Tesouro” é a tesouraria da igreja/templo. E até damos um bônus à platéia, comprando em longas prestações um sistema de ar-condicionado, bancos estofados e vidros coloridos para as janelas. Claro, se continuássemos a nos reunir nas casas, nas praças e em outros lugares nada disso seria necessário, mas aí seria muito sem graça. Em casa não tem palco! Não tem jogo de luzes nem som de última geração!
E já que demos um reboot no sacerdote, nos patriarcas, no shofar, no tallit, no kippah, no menorah, na mezuzah, nos levitas e na arca da aliança, porque não reerguer o próprio templo “de Salomão”, a glória de Israel? Mesmo que seja uma cópia do templo de Herodes, o assassino... mas é bacana, não é mesmo? Assim faremos um templo muito maior e mais moderno do que outros grupos de cristãos, que também compartilham da crença de que sem templo não há Deus, e por isso fizeram templos enormes, espalhados por toda a terra...
Para não cairmos na mesma armadilha que nossos irmãos do passado, que foram perseguidos, encarcerados, usados como tochas e até comidos por leões, começamos a determinar vitória, declarar que “o Brasil é de Jesus”, fazer passeatas e manifestações. Para extirpar o mal, não fazemos o que os apóstolos fizeram, que foi pregar o Evangelho, fazer discípulos e plantar igrejas. Não, isso não funciona mais. Recebemos a revelação de que devemos fazer atos proféticos: rodear as cidades, derramar vinho, azeite, água, farinha de trigo, pétalas de rosas, caroço de feijão, como os pajés, maçons e macumbeiros (sem preconceito, viu? somos politicamente corretos). Isso sim há de funcionar! Despacho gospel nas encruzilhadas e praias. A cidade assim há de se render (não sabemos bem a quem, mas que vai se render, isso vai). Assim nós declaramos!
Não aceitamos ser perseguidos como nos dias de Nero! Por isso criamos blogs, montamos comunidades no Orkut, organizamos tuitaços, espalhamos mensagens pelo Facebook, fazemos correntes por e-mail. Mandamos cartas aos deputados, criamos uma frente parlamentar. Fundamos partidos, disputamos eleições, negociamos apoio a candidatos de todo tipo; fazemos caravanas para pressionar (pelo menos pensamos que pressionamos) emissoras de TV; reivindicamos cargos no governo, fazemos jantares em nossas mansões e cultos em nossas igrejas em homenagem a políticos, pois assim cremos que vamos obter o que queremos. Fazemos acordo com a mídia. Que bobos aqueles cristãos de Roma, não usaram nenhuma dessas estratégias! É verdade que até agora o nosso esforço não deu em nada, mas temos fé que assim transformaremos a nação! Bem.. talvez não tanto como eles transformaram o mundo daquela época, mas eles tinham mais tempo do que nós. Opa, espera aí que meu celular está chamando e eu preciso atualizar meu perfil.
...
Eu vi mais um monte de diferenças entre o que aqueles cristãos primitivos e simplórios praticavam, como viviam, sobre o que pregavam - e o que hoje praticamos, vivemos e pregamos, nós, que somos pessoas cultas, modernas, sofisticadas. Tecnológicas. Integradas. Politicamente corretas. Com responsabilidade sócio-ambiental. Pós-graduadas. Ecológicas. Sustentáveis. Com empregabilidade. Dizimistas fiéis. 
E resolvi que gostaria de ter nascido há dois mil anos atrás. Mesmo com o risco de ir parar no Coliseu, acho que era melhor.
Mas como não tem jeito, quero que Deus me ajude a pelo menos imitar aqueles irmãos de séculos passados. Afinal, eles escreveram: “Sejam meus imitadores” (I Coríntios 4:16 e 11:1; Filipenses 3:17; I Tessalonicenses 1:6; II Tessalonicenses 3:7,9; Hebreus 6:12).

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