terça-feira, 3 de setembro de 2013

A lei da semeadura

Esta é a última da série de cinco sobre dinheiro e ofertas (espero).
Existe uma doutrina que ganha corpo no meio evangélico, chamada o “princípio da semeadura”, ou “da multiplicação”. Ela diz que quanto mais darmos em ofertas e dízimos, mais receberemos de volta. A passagem de II Coríntios 9:6 é a pedra fundamental do “princípio da semeadura”: “Mas digo isto: Aquele que semeia pouco, pouco também ceifará; e aquele que semeia em abundância, em abundância também ceifará”, e também Gálatas 6:7 (“pois tudo o que o homem semear, isso também ceifará”). Citam Malaquias 3:10-11 (“Trazei todos os dízimos à casa do tesouro ...  e depois fazei prova de mim ... se eu não vos abrir as janelas do céu, e não derramar sobre vós tal bênção, que dela vos advenha a maior abastança... reprovarei o devorador...”) sem a menor conexão com o tema, como a parábola do semeador (em que uma parte da semente frutifica a “cem por um”).
Há de fato um ensino sobre o que é semeado e o que é ceifado. O problema é quando o aplicam à “teologia da prosperidade”: quem dá mais dízimos e ofertas recebe mais bênção. É esta uma leitura válida? O que é chamado pelos pastores modernos de “lei da semeadura” é doutrina bíblica ou uma interpretação forçada, para iludir os pobres de conhecimento?
Na carta que escreveu aos crentes de Corinto, Paulo cita a semeadura e a colheita para mostrar que aquilo que é doado nunca se perde, tendo em mente uma coleta que se faria para ajudar os cristãos que passavam necessidades. No capítulo 8 ele explica: “Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus que foi dada às igrejas da Macedônia; como, em muita prova de tribulação, a abundância do seu gozo e sua profunda pobreza abundaram em riquezas da sua generosidade” (II Coríntios 8:1, 2).
Qual é a graça de Deus que foi dada às igrejas da Macedônia? A generosidade. Eles eram pobres, mas mesmo assim generosos. Esta foi a graça dada por Deus a eles. Esta generosidade não era para com a igreja local ou para os desígnios particulares dos seus pastores. A generosidade é para com os santos (v. 4): “o privilégio de participarem deste serviço a favor dos santos”.
Quem são esses “santos”? Os irmãos pobres em Jerusalém, como vemos em Romanos 15:25-28 – “Mas agora vou a Jerusalém para ministrar aos santos. Porque pareceu bem à Macedônia e à Acaia [região da Grécia onde ficava a cidade de Corinto] levantar uma oferta fraternal para os pobres dentre os santos que estão em Jerusalém. Isto pois lhes pareceu bem, como devedores que são para com eles. Porque, se os gentios foram participantes das bênçãos espirituais dos judeus, devem também servir a estes com as materiais. Tendo, pois, concluído isto, e havendo-lhes consignado este fruto, de lá, passando por vós, irei à Espanha”.
Assim, Paulo comenta com os coríntios como eles eram generosos pela graça de Deus, e como eram ricos em tudo: (v. 7) “Ora, assim como abundais em tudo: em fé, em palavra, em ciência, em todo o zelo, no vosso amor para conosco, vede que também nesta graça abundeis”. Vemos que essa “abundância” e “riqueza” não estão ligadas a bens materiais. De fato, Paulo aqui emprega os termos “rico” e “pobre” para falar da glória e humilhação de Cristo, bem como nossa Salvação (v. 8-12).
Paulo diz para contribuírem segundo o que possuem. Ninguém é constrangido a dar mais do que puder! Isso explica o que ele diz à frente sobre “semear” e “colher” (v. 13-15): “Pois digo isto não para que haja alívio para outros e aperto para vós, mas para que haja igualdade, suprindo, neste tempo presente, na vossa abundância a falta dos outros, para que também a abundância deles venha a suprir a vossa falta, e assim haja igualdade; como está escrito: Ao que muito colheu, não sobrou; e ao que pouco colheu, não faltou”.
A oferta deve ser de modo que não haja prejuízo para ninguém. Não deve beneficiar apenas uma pessoa ou um grupo reduzido. Ninguém deve ofertar aos outros para ficar apertado. Se isto fosse praticado hoje, não significaria que a igreja também é responsável em partilhar seus bens com os membros mais pobres? O pastor que vive promovendo festas em sua luxuosa cobertura, jantares caros com políticos corruptos, compra carro do ano e até jatinhos, não deveria antes buscar a igualdade entre seus membros?
No cap. 9:7, Paulo exorta os coríntios a contribuírem sem tristeza ou constrangimento. Tristeza, por que quem contribui pode pensar que nunca mais verá o dinheiro. Quanto a isto, Calvino explica:
“Ele agora recomenda a assistência caridosa, usando uma bela comparação em que a vincula à semeadura. Pois, na semeadura, a semente é lançada pela mão, espalhada aqui e ali, sobre o solo; é sepultada e, por fim, apodrece; de tal modo que, aparentemente, quase nem existe. Dá-se o mesmo com o donativo: o que sai de nós para alguém, parece diminuir o que possuímos, mas o tempo da ceifa virá, quando os frutos aparecerão e serão recolhidos. Pois o Senhor considera o que é doado aos pobres como sendo doado a Ele mesmo, e um dia recompensará o doador com juros fartos [Provérbios 19:17]. Focalizaremos agora a comparação de Paulo. Ele diz que o homem que é frugal em sua semeadura terá uma colheita tão escassa quanto sua semeadura; mas o homem que semeia generosamente e com as mãos abertas fará, igualmente, uma colheita generosa. Que esta doutrina seja solidamente radicada em nossa mente, a saber: sempre que a prudência carnal nos impedir de fazer o bem por receio de perdermos algo, tenhamos prontamente condições de resistir a tais impulsos, movidos pela lembrança da declaração do Senhor de que, ao fazermos o bem, estamos semeando. É preciso entender esta colheita, seja em termos de recompensa espiritual de vida eterna ou como uma referência às bênçãos terrenas com as quais o Senhor agracia o benfeitor. Pois o Senhor requer esta beneficência da parte dos crentes não só no céu, mas também neste mundo. É como se Paulo quisesse dizer: “Quanto mais liberais venhais a ser para com vosso semelhante, possuireis muito mais ricamente a bênção que Deus derrama sobre vós”. Aqui, novamente, ele usa o termo bênção como oposto de frugal, assim como um pouco antes ele o contrasta com avareza. Tudo indica que a palavra é aqui usada no sentido de liberalidade ampla e abundante”.(João CalvinoComentário de II Coríntios, Ed. Fiel, pg 231-232).
Continuando, v. 10 = “Ora, aquele que dá a semente ao que semeia, e pão para comer, também multiplicará a vossa sementeira, e aumentará os frutos da vossa justiça”. Deus é o provedor de tudo; o Homem, mesmo quando faz uma oferta, não dá do que é propriamente seu, e sim daquilo que Deus lhe tem dado (veja Atos 17:25). E para que serve esta semente que Deus nos dá? Para sustentar ministérios milionários de tele-pastores que cada vez mais ficam ricos? para esbanjar “prosperidade”, em troca de uma suposta benção financeira sobrenatural? Não!
Deus promete suprir o ofertante para que ele não passe necessidade. No entanto, quando o apóstolo fala de multiplicar as sementes, estaria ele falando que o ofertante seria próspero materialmente? Afinal de contas, é isto que pastores modernos dão a entender com sua “lei da multiplicação”. O apóstolo até fala de enriquecimento: (v. 11) “enquanto em tudo enriqueceis para toda a liberalidade, a qual por nós reverte em ações de graças a Deus”.
A semente que provém de Deus é para ajudar os pobres da igreja, para que todos sejam abençoados e Deus seja glorificado! Veja o contexto direto no versículo 9: “Como está escrito: Distribuiu, deu aos pobres, a sua justiça permanece para sempre”, uma citação que Paulo faz de Salmos 112:9, para mostrar que a generosidade a quem precisa é característica de todo cristão. Deus abençoa a nossa vida para “aumentar os frutos da nossa justiça” (9:10), para “toda a generosidade” (v. 11) e para “suprir as necessidades dos santos” (9: 12). Ou seja, Deus pode, segundo a vontade Dele, prover em nossas vidas quando ajudamos os pobres da Igreja, principalmente para aumentar a possibilidade desta ajuda continuar cada vez mais: “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos. Ora, aquele que possuir recursos deste mundo, e vir a seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (I João 3.16-17).
II Coríntios mostra que, quando Deus nos dá uma provisão financeira, mesmo com sobras, não é para o proveito próprio, e sim para ser usada em generosidade aos necessitados, para a glória de Deus. O versículo 9:11 é claro quando afirma “…para toda a beneficência”, “para toda generosidade”. Veja como viviam os convertidos naquela época: “Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade (At 2.44-45). Este conceito de abundância financeira é, de fato, o mais claro sinal de avareza na vida de alguém: “Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui” (Mateus 12:15).
Se a “lei da semeadura financeira” funcionasse como se afirma, porque existem cristãos pobres que precisam de ajuda? Falta de fé para “semear” o que não têm? Porque então Paulo organizou esta coleta para os pobres, ao invés de lhes propor um “desafio” para que eles fossem abençoados com a “lei da semeadura”? O próprio Paulo passou necessidades (Filipenses 4:10-20, II Coríntios 11:27). Estaria ele em contradição consigo próprio?
Porque Jesus se fez pobre durante seu ministério na terra (II Coríntios 8:9), não tendo sequer onde reclinar a cabeça (Mateus 8:20)? Porque Jesus disse que dificilmente entraria um rico no reino dos Céus (Mateus 19:23-24), e ainda que não ajuntássemos tesouros na terra (Mateus 6:19-24)?
A igreja está preocupada em exortar aqueles que têm em abundância a compartilhar com os irmãos mais pobres? Não sei, mas é fato que as igrejas arrecadam mais de R$20 bilhões por ano no Brasil. Se o patrimônio da igreja tem sobras maiores que os bens de alguns membros, ela se dispõe livremente e de puro amor a compartilhar o seu excesso de arrecadação para que todos tenham igualdade de condições? Será que as ofertas e desafios financeiros que os tele-pastores fazem em seus programas são destinados aos pobres da Igreja? Não, pois eles categoricamente afirmam qual é o destino do dinheiro doado em suas coletas: sustentar os programas de TV (valores milionários), viagens nacionais e internacionais, mega-cruzadas caríssimas, jatinho particular etc. Posso estar errado, mas eu nunca vi um desafio financeiro para ajudar os pobres da igreja. A Igreja não deveria manter somente aquilo que ela precisa, compartilhando o resto com os irmãos? Não deveria ela confiar que Deus lhe suprirá toda e qualquer necessidade?

(fonte 1) (fonte 2) (fonte 3

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