terça-feira, 11 de março de 2014

Contradições da Bíblia? (5)

A interpretação alegórica

Mas há trechos na Bíblia que só podem ser devidamente entendidos se pudermos decodificar os símbolos, principalmente os de caráter profético; e este é um caminho complicado, pois muitos acabam presas fáceis de alegorias e simbolismos que mais confundem do que explicam.
O método de interpretação alegórica preconiza a máxima espiritualização da Escritura. A maioria dos textos teria uma espécie de sub-texto, entrelinhas misteriosas, cheias de simbolismos ocultos e passíveis de interpretações diversas. Assim, as profecias do Velho Testamento sobre um reino terrestre glorioso para Israel são consideradas alegorias da Igreja. “Sião” passa a significar a Igreja ao invés de Jerusalém. Vê-se “o deserto florescerá como a rosa” (Isaías 35) como uma imagem da expansão do Evangelho, ao invés de uma futura condição literal sobre a terra. Ezequiel 40-48 vira uma representação simbólica da Igreja, e não um futuro templo literal. Os acontecimentos em Apocalipse – os julgamentos sobre a terra, as guerras, as duas testemunhas, prisão de Satanás, são vistos simbolicamente, e não como futuros eventos literais. Os alegoristas dizem que os 144.000 não são realmente 144.000, e que o milênio não tem realmente mil anos. Veremos mais adiante que a maioria dos teólogos católicos adota esse método sem pestanejar - o que explica muita coisa, como você verá.
O método alegórico tem suas origens tanto no pensamento grego (que evitava a interpretação literal dos antigos mitos) quanto na literatura rabínica. Os estóicos elaboraram uma interpretação alegórica dos deuses, em que buscavam, além do texto, um significado mais profundo. Eles não usavam a palavra alegoria, mas, sim, υπόνοια (uponoia, cf. suspeita), uma forma de “comunicação indireta”, que diz algo para dar a entender outra coisa.
Entre os judeus, o nome mais proeminente nesse assunto é o de Fílon de Alexandria (25 a.C.-50 d.C.), um filósofo que tentou uma interpretação do Antigo Testamento à luz da filosofia grega e da alegoria, onde expôs a sua visão platônica do judaísmo. Foi como o primeiro pensador a tentar conciliar o conteúdo bíblico à filosófica. Como, aliás, os gregos e depois os romanos haviam feito antes, tentando concatenar seus próprios mitos com os antigos mistérios egípcios.
Mas entre os cristãos, não se interpretava as Escrituras alegoricamente, pelo menos até o fim do século II.  A escola fundada em Alexandria se tornou o quartel-general desse método, sob a liderança de Panteno e depois Clemente e Orígenes. Alexandria era então o maior centro de estudos do mundo, local de reunião e estudo dos intelectuais mais proeminentes, com sua biblioteca de meio milhão de volumes; foi nesse ambiente de debate filosófico-teológico que Clemente achou em Panteno o mestre que tanto procurou. Converteu-se ao cristianismo e sucedeu ao mestre em 190, e misturou a filosofia de Platão com o Cristianismo. Como se sabe, o platonismo (e depois o neo-platonismo) enfatizava o conhecimento, como os gnósticos, e assim até mesmo a salvação pessoal dependia mais do conhecimento do que de Cristo. Clemente simpatizava com esses aspectos místicos e com o método alegórico, e a Escritura foi submetida a todo tipo de exercício metafísico, da mesma forma que Fílon fez com o Pentateuco – o que abriu espaço a doutrinas estranhas, como veremos adiante.
Clemente sentia-se mais à vontade com a filosofia do que qualquer outro mestre cristão, considerando-a o modo de Deus preparar os gregos para a vinda de Cristo. Por isso ele procurou integrá-la à fé cristã. Como os estóicos, ele cria que o verdadeiro cristão deve cultivar a sabedoria e ficar acima das paixões para se tornar semelhante a Deus. O verdadeiro conhecimento não está restrito a um único livro; pelo contrário, a Verdade divina está espalhada pelo mundo: “Há um rio da Verdade, mas muitos afluentes se encontram com ele, desse ou daquele lado”, escreveu.  Vemos aí uma semente de heresia, uma espécie de proto-panteísmo ecumênico ou coisa que o valha. E assim ele procurava interpretar as Escrituras: “Sabendo que o Salvador não ensina nada de uma maneira meramente humana, não devemos ouvir seus pronunciamentos de forma carnal; mas com a devida investigação e inteligência, devemos buscar e aprender o significado oculto deles”.  Isso só pode ser obtido através do esforço e da fé do buscador, mas a essência da mensagem de Jesus estaria oculta, só compreendida pela interpretação alegórica ou simbológica. Segundo Eusébio de Cesaréia, Clemente fazia uso com freqüente de livros apócrifos, e dizia: “Toda verdade é verdade de Deus, venha de onde vier”. Por aí já se vê no que vai dar essa mistureba.
A partir de 202, a escola esteve sob Orígenes, que como Clemente e Panteno, acreditava na reencarnação e no karma. Entre suas idéias, derivadas do método alegórico, estão:  o celibato como estado santo e superior ao casamento; a vida ascética, contrária ao exemplo dos apóstolos; tentativa de conciliação da filosofia pagã com o Cristianismo; regeneração batismal; purgatório; todos os homens e até mesmo Satanás e demônios, eventualmente, seriam salvos (Cristo, na sua expiação, fez um resgate de Satanás); o Espírito Santo foi a primeira criatura feita por Deus; Jesus Cristo não é plenamente Deus. Eusébio atesta na sua História Eclesiástica 6:19 que Orígenes “leu as obras de Queremon, o estóico, e de Cornuto. Desses aprendeu o método alegórico de interpretação usual nos mistérios dos gregos, aplicando-os às Escrituras judaicas”.
Para Orígenes, assim como para muitos pseudo-intelectuais “modernos”, a Bíblia contém erros. Entendia ele que “intercalados com histórias reais estão acontecimentos que não aconteceram, que algumas vezes não poderiam acontecer e que algumas vezes poderiam acontecer, mas não aconteceram” (Christopher A. Hall, “Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja”, Ed. Ultimato, 2000, pg. 138). Quando ele não conseguia entender uma passagem, ou tinha dificuldade para crer em algo, tentava uma interpretação simbólica. Talvez venha daí a idéia de que é necessário algum sábio “magistério” para filtrar a Bíblia para o povo, posição adotada pelo catolicismo até hoje.
Veja, por exemplo, a confusão que ele arranja com o bom samaritano. O homem assaltado é Adão; Jerusalém é o Paraíso e Jericó, o mundo. Os ladrões são os demônios, o sacerdote é a Lei e o levita simboliza os profetas. O samaritano é Cristo, as feridas a desobediência, a hospedaria é a Igreja, a promessa de retorno do samaritano é a volta de Cristo. Até aí tudo bem, mas então começa a confusão: ele continua dizendo que o burrinho é o corpo do Senhor, os dois denários são o Pai e o Filho (que vão cuidar do ferido), e o hospedeiro é o cabeça da igreja (“o papa”?). Como Jesus pode ser ao mesmo tempo um dos dois denários, o samaritano e o jumento? É muito mais lógico e coerente que o hospedeiro seja o Espírito Santo, que vai cuidar do homem até o samaritano retornar, e nem sei se precisamos procurar significado no jegue. Além do mais, podemos inferir que os dois denários são o Antigo e o Novo Testamentos, ou os mandamentos principais (amar a Deus e ao próximo), ou a fé e as obras... ou então que o levita e o sacerdote são as religiões institucionalizadas que não fazem caridade... etc... Não é preciso buscar sentido oculto em tudo. Tudo isso é legal e bacana como exercício investigativo, mas obviamente, o principal é o sentido literal – fazer o bem sem distinção de pessoas e não passar ao largo, como o levita e o sacerdote. Hall (op.cit.) opina que “embora o sermão de Orígenes seja muito interessante e homileticamente rico, a dúvida é se essa interpretação é correta e afinal, satisfatória. Como saber se Jesus pretendeu que a parábola do samaritano fosse interpretada alegoricamente?... os filósofos gregos haviam feito assim ao estudar as obras de Homero... Orígenes fez o mesmo com a Bíblia” (pg. 140/141).
Na verdade, Orígenes nem era tão bom assim em matéria de interpretação. Apesar de o método alegórico enxergar mistérios ocultos em textos claros e diretos, na prática Orígenes fez o contrário: atormentado pelo desejo sexual, levou Mateus 5:28-30 ao pé da letra e castrou-se. Orígenes foi descrito por Mosheim como “um composto de contradições: sábio e insensato, perspicaz e estúpido, criterioso e não criterioso; o inimigo da superstição, e seu protetor; um fervoroso defensor do Cristianismo, e seu adulterador; enérgico e irresoluto; um a quem a Bíblia deve muito, e de quem ela tem sofrido muito”.
Um outro grande disseminador do alegorismo foi  Agostinho (354-430), também um dos “pais da igreja”. Alguns ensinos danosos ao Cristianismo original, com base em suas interpretações alegóricas, foram: os sacramentos como meio de salvação; o batismo infantil, alegando que as crianças não batizadas estavam perdidas, e chamando todos que rejeitavam o batismo infantil de “infiéis e malditos”; que Maria não cometeu nenhum pecado. Como Orígenes, acreditava em purgatório; a autoridade da Igreja estava acima da Bíblia; e o amilenismo (ou amilenarismo), ensinando que a igreja católica é que era o reino de Deus. Nota – igrejas evangélicas que hoje pregam “domínio da nação”, “conquista de cidades”, “atos proféticos para conquistar territórios”, estão repercutindo a teoria amilenista católica/agostiniana, pois não crêem na Vinda de Cristo para implantar o Seu reino milenar na Terra. Acreditam que a Igreja substituiu Israel (“teologia da substituição”) e deve governar o mundo, aqui e agora. Por isso “determinam”, “decretam”, “reivindicam”, “estabelecem” coisas como a prosperidade, o governo etc. Cuidado. Tudo isso é derivação de interpretações alegóricas.
Para Agostinho, ao homem não é permitido o conhecimento literal e imediato das Escrituras, pois só por um sentido oculto se pode aproximar da Verdade divina, sem nunca alcançá-la totalmente. Mais tarde, Tomás de Aquino estabeleceu uma distinção entre a alegoria teológica (que não seria um artifício retórico mas sim uma visão particular do Universo) e a alegoria secular ou literária. O uso de alegorias se espalhou por outros campos: tornou-se comum na arte medieval o processo de construção das grandes catedrais, como a de Chartres, obedecendo a complicados esquemas alegóricos, pois acreditava-se que tudo deve significar algo mais do que o simplesmente observável. A literatura desse período também é muito influenciada por esses conceitos, como “A Divina Comédia”e outros textos da época.
Conceitos que ecoam até na Bíblia de Genebra, onde há uma nota em Apocalipse 9:11 identificando o “anjo do poço sem fundo” como “anticristo, o Papa, rei de hipócritas e embaixador de Satanás”. Porém não há razão para se ver esse anjo senão como um anjo caído literal em um buraco literal, e não um símbolo ou alegoria. 
Também o
 Lion Handbook of the Bible (1983), em sua interpretação de Apocalipse 13, diz que as duas bestas são “o Império Romano e a adoração ao seu imperador”.
E o
 Illustrated Bible Handbook assume uma abordagem não-comprometida de Apocalipse, apresentando tanto o ponto de vista literal-futurista como o alegórico, mas sem expor as falhas deste último. Dizem seus autores que os 144.000 remidos são “um número perfeito (12 x 12 x 1.000), representando toda a Igreja de todas as épocas”. A morte das duas testemunhas “simboliza toda a Igreja silenciada pela perseguição”. Os 1260 dias (três anos e meio) são “simbólicos” e representam “períodos de aflição” passados por todos os crentes. Os 42 meses em Apocalipse 13:5 “representam a época do evangelho”. A prisão de Satanás (cap. 20) “aconteceu no nascimento de Jesus”! Essas interpretações esdrúxulas são as preferidas por quem quer complicar e não explicar, e assim mostrar que cada cabeça uma sentença. Por isso essas interpretações são as que costumam aparecer em programas sobre catástrofes apocalípticas do Discovery Channell e similares.
O falso profeta Harold Camping, recentemente falecido, depois de agendar o arrebatamento para várias datas – e não acertar nem uma – apareceu certa vez com uma interpretação bizarra: as duas testemunhas representam a Igreja; a Igreja tem estado na grande tribulação, mas agora foi morta. Por isso, Deus chegou ao limite da paciência com igrejas e pastores e eles não têm mais autoridade. Obviamente, uma premissa equivocada que leva a conclusões no mínimo questionáveis.
Todos esses arrazoados místicos estão no núcleo da teologia católica, e deles bebem muitos evangélicos que adotam o dominionismo, a teologia da prosperidade e outras aberrações. Portanto devemos ficar alertas com esse método, tendo muito cuidado com a forma de interpretar a Bíblia, como veremos a seguir.

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Curiosidades
Os estóicos se reuniam sob os pórticos (“stoa”, em grego) dos templos, mercados e ginásios, e ensinavam que as emoções destrutivas resultam de erros de julgamento; e que um sábio, ou pessoa com “perfeição moral e intelectual”, não sofreria dessas emoções; daí associarmos a palavra “estóico” a uma pessoa paciente, que não se abala. O estoicismo afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um logos divino; a alma está identificada com este princípio divino como parte de um todo ao qual pertence. Este logos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele; graças a ele o mundo é um kosmos harmônico.
Fílon de Alexandria também defendia a doutrina estóica do logos, a qual mais tarde infiltrou-se no Cristianismo. Para Fílon, o logos é a própria Lei (Torah), a ação de Deus no mundo, o instrumento da Criação, modelo do mundo e imagem de Deus, a Palavra reveladora e o único meio a partir do qual a alma humana adquire o conhecimento verdadeiro, que vem do conhecimento de Deus. Por isso muitos identificam no início do Evangelho de João algumas semelhanças com o pensamento de Fílon.

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